Global Risk Perspectives - Monthly insights on geopolitics, trade & climate
Voltar aos artigosComité Técnico da MDS Portugal
29.04.2022
A Guerra na Ucrânia e o impacto no mercado segurador
Apesar de os atos de guerra constituírem exclusões na generalidade dos contratos de seguro, é preciso ter em atenção as exceções e perceber os riscos para além da sua transferência para o mercado.
A recente invasão do território ucraniano pela Rússia criou um novo contexto geopolítico e económico. No dia 24 de fevereiro, quando o presidente russo Vladimir Putin lançou um ataque militar contra a Ucrânia após ter reconhecido a independência das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, os EUA, a União Europeia, o Reino Unido e as Nações Unidas lançaram sanções económicas contra organizações, líderes e oligarcas russos para pressionar o país a abandonar a ofensiva. Dentre tais restrições destacam-se medidas como a proibição de viagens, o congelamento de ativos, e a remoção dos bancos russos do sistema de pagamentos internacionais Swift. Tais medidas e o próprio conflito em si provocam, inevitavelmente, fortes impactos na indústria seguradora mundial – inclusive algumas corretoras e seguradoras nos países em conflito decidiram suspender as suas operações.
Por norma, os eventos resultantes de atos de guerra constituem exclusões na generalidade dos contratos subscritos mundialmente por uma série de razões. A principal resulta da dimensão catastrófica dos danos que um conflito militar pode acarretar, passíveis de colocar em risco a própria capacidade financeira das seguradoras. Uma guerra tem a capacidade de gerar perdas incalculáveis e incontroláveis com acumulação de riscos complicados, quando não impossíveis, de serem absorvidos pelos mercados segurador e ressegurador. Além disso, na eventualidade de sinistros, todo o processo de peritagem, determinação de danos e regularização estaria, à partida, comprometido pela própria situação de conflito.
Há, no entanto, algumas exceções à exclusão geral dos contratos que merecem ser observadas. Também é preciso abordar os riscos para além da tradicional transferência para o mercado segurador e refletir sobre como identificá-los, avaliá-los e tratá-los através de outras ferramentas como analisaremos de seguida.
Patrimoniais e Engenharia
No que diz respeito aos ramos de Patrimoniais e Engenharia, os impactos da guerra na Ucrânia vão fazer-se sentir mais a médio e longo prazos do que no imediato. Isso deve-se ao facto de os atos de guerra, considerados riscos fundamentais em razão do seu crescente potencial de afetar um elevado número de pessoas e bens em simultâneo, serem uma exclusão geral dos contratos de Resseguro e apólices de seguro direto.
Mas a médio e longo prazo, deveremos assistir a uma expressiva redução da capacidade de oferta de subscrição tanto para o território russo, como para o ucraniano, ou ainda para outros eventuais países envolvidos, tendo em conta a decisão dos principais Grupos Seguradores e Resseguradores internacionais de não operarem em tais geografias. No que diz respeito à Rússia, tal aspeto evidencia-se principalmente por fatores de índole reputacional e não diretamente do efeito de sanções internacionais.
O mercado local, por sua vez, luta face a uma economia a caminhar para default, a par com uma forte desvalorização do Rublo. Inúmeros programas internacionais terão, assim, que ser revistos no que toca aos níveis de serviços e âmbito de coberturas nestes países. Além disso, o conflito europeu virá exacerbar uma tendência já verificada nos mercados de Seguro e Resseguro internacionais, coadjuvada pelo atual ambiente de hard market, que se reflete numa redução da capacidade disponível para a subscrição de riscos político-sociais.
Transportes
O ramo que, normalmente, constitui uma exceção à exclusão no que se refere a guerras é o de marine (incluindo os riscos do transporte internacional e os conexos, nomeadamente dos próprios meios de transportes – hull – barcos e aviões).
As seguradoras que exploram a área de transportes costumam comercializar coberturas associadas à guerra. Contudo, o racional de tais coberturas centra-se em situações inesperadas nas quais as cargas, os veículos, os barcos em trânsito possam ser envolvidos no conflito, quando esse eclode no decurso do transporte. No caso de haver guerras declaradas e em curso, as seguradoras já não se disponibilizam a tomar riscos relacionados com tais eventos. Inclusivamente, cancelam, com efeitos imediatos, coberturas anteriormente fornecidas, invocando o direito da rescisão especial dos contratos.
Com a escalada da invasão à Ucrânia, assistimos, por exemplo, a seguradoras que operam neste mercado a notificar os seus segurados no sentido de cancelar os riscos de guerra, greves, tumultos e riscos de comoção civil em relação aos trânsitos que envolvam águas territoriais ucranianas e russas no Mar Negro e no Mar de Azov. A rescisão, no entanto, não se aplica a transportes que se iniciaram antes de sua implementação. Nesses casos, os ativos seguros permanecem totalmente cobertos até o final das suas jornadas, sendo que a cobertura de seguro pode ainda ser estendida por mais 30 dias, no máximo, para armazenamentos iniciados antes do comunicado da rescisão.
Quanto à Rússia, apesar do seu território não estar em guerra, as sanções económicas das quais é alvo prejudicarão em muito novos contratos e renovações, complicando a sua aceitabilidade por parte das seguradoras. Em relação aos contratos em vigor com exposição ao país, algumas seguradoras continuam a dar coberturas a empresas não-russas, desde que o negócio em causa não tenha vínculos com empresas instituições e pessoas alvo de sanções.
Cyber
A guerra entre a Ucrânia e Rússia também está a acontecer no mundo cibernético – perpetrada tanto por organizações de cada um dos estados como por particulares de todo o mundo.
Os seguros cibernéticos incluem cláusulas de exclusão de guerra e terrorismo – e o presente conflito veio enfatizar a sua importância nas apólices de seguro cibernético pela dificuldade da sua aplicação. Desde logo, pela natureza desse tipo de ataque e pelas características dos criminosos, quase sempre não identificados. Muitas vezes, constitui um obstáculo intransponível para as seguradoras obter a prova efetiva dos factos e as informações acerca da origem, autoria, motivação e do enquadramento de determinado ataque. A possibilidade de aplicação da exclusão de guerra e o seu sucesso dependem também dos wordings das apólices, dos exatos termos em que a cláusula é redigida e da jurisprudência local. É, portanto, difícil antecipar cenários sólidos e previsíveis, e essa indefinição corre contra as seguradoras que podem ter de arcar com processos judiciais demorados, dispendiosos e, muito provavelmente, desfavoráveis.
Responsabilidades
Importa notar que a Ucrânia e a Rússia são países nos quais as respetivas legislações preveem que os seguros sejam emitidos por seguradoras locais devidamente autorizadas. Ora, as apólices locais em ambos os países, mesmo aquelas incluídas no âmbito dos programas internacionais, continuam, em princípio, válidas e eficazes. Porém, os wordings desse tipo de seguros também incluem cláusulas de exclusão de guerra; logo, os sinistros originados em reclamações de danos causados por guerra estarão excluídos.
Pessoas
Tal e qual os outros seguros, os de Pessoas – Vida, Saúde, Acidentes e Viagem – excluem o risco de guerra, mas essa exclusão pode variar.
Está, à partida, excluída a participação ativa em atos de guerra, guerrilha, terrorismo, ou qualquer outra forma de insurreição. No entanto, é possível que estejam salvaguardadas as situações em que a pessoa segura foi envolvida num conflito sem ser por vontade própria. É, assim, da maior importância, assegurar que as coberturas existentes garantam tais riscos.
Outra exclusão frequente, nomeadamente nos seguros de viagem, refere-se às situações em que, deliberadamente, tendo conhecimento prévio da situação de conflito, e de forma voluntária, a pessoa desloca-se para um cenário de guerra. Porém, mesmo nesse cenário, há exceções, como, por exemplo, no caso de jornalistas, para quem é possível contratar seguros com proteção específica.
Seguro de crédito
As companhias que gerem o risco de crédito também têm por norma a exclusão de guerra das apólices.
Existe uma seguradora, responsável pela gestão da linha com cobertura do Estado Português, que emitiu uma nota para os seus segurados no dia em que a invasão ao território ucraniano teve início, comunicando a suspensão temporária de todas as decisões de cobertura para a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Informava ainda que toda a faturação emitida a partir de 24 de fevereiro no que tangia às "apólices da Linha de Seguro de Créditos a Exportação de Curto Prazo com Garantia do Estado Português que se encontram em vigor, serão consideradas em agravamento de risco e, assim, não cobertas pelo seguro”. Em suma, todos segurados com vendas realizadas para a Rússia e Ucrânia até 1 de março que tivessem contratada uma apólice com cobertura do Estado tinham salvaguardado o risco político/transferência – no qual se inclui a guerra. Porém, a partir daí, essa cobertura estava suspensa.
Gestão de Riscos
A guerra na Ucrânia ocorre em simultâneo com um conjunto de outras crises internacionais e desafios estratégicos globais (digitalização, descarbonização, transição energética, pandemia do coronavírus, entre outros), que introduzem novos riscos para as empresas, e, consequentemente, mais dificuldades para os gestores de riscos e os tomadores de decisão em geral.
Importa salientar que o conflito provoca disrupções nas cadeias de abastecimento e na distribuição do gás, aumento da inflação e das taxas de juros, instabilidades relacionadas com a cibersegurança, escalada de sanções económicas, aumento do risco geopolítico, além da evidente crise humanitária com milhões de deslocados e refugiados. É um exemplo de que eventos globais disruptivos e inesperados podem acontecer a qualquer momento e que, por isso, as empresas devem preparar-se adequadamente para ultrapassar períodos ininterruptos de instabilidade.
Apesar da passível transferência para o mercado segurador, há uma parte dos riscos que não pode ser assegurada, seja pela sua especificidade, pelo alto potencial catastrófico, ou pelo contexto do mercado. Nesse aspeto, os gestores de risco desempenham um papel de vital importância na identificação e análise de riscos, bem como no desenvolvimento e implementação de estratégias de mitigação e monitorização, o que contribui para potenciar a resiliência dos negócios.
Por Comité Técnico da MDS
Coordenado por Jorge Luzzi, o Comité Técnico da MDS é composto por Ana Mota (Pessoas), Luís Paralvas (ERM), Nuno Rodrigues (Property e Construction Parametrics), Pedro Pinhal (Liabilities e Claims), André Figueiredo (Retalho e ME), António Fernandes (Cativas e Alternative Risk Transfer), Tiago Mora (Resseguro), e Bruna Carvalho (Assistência Operacional).